Passava pouco das seis da tarde quando começamos a chegar. Em grupos pequenos vindos de vários bairros de Porto Alegre e região metropolitana, o passo firme, olhar atento, reconhecendo umas às outras pelas conversas e cartazes. Contornei a praça com certa dificuldade – pela primeira vez na vida guiava uma Kombi. O peso era o da responsabilidade: dentro dela, o equipamento que pelas três horas seguintes amplificaria nossas vozes e, fala a fala, traduziria a indignação por tudo o que nós, mulheres, temos vivido desde sempre.
Voltando um pouco no tempo para lembrar: a gota d’água, o absurdo que gerou essa reação, foi a agressão policial contra participantes da 1º Feira do Livro Feminista e Autônoma de Porto Alegre, na noite de domingo para segunda-feira. Desde o início do evento houveram agressões e provocações machistas e fascistas, mas foi na noite do dia 1 de novembro que cerca de 20 mulheres foram brutalmente agredidas e intimidadas durante um ensaio para uma intervenção artística. Sob a desculpa de perturbação da ordem, os policiais bateram, espancaram, ameaçaram, filmaram, subtraíram celulares. Dois moradores de rua que estavam na praça no momento também foram agredidos. Nada surpreendente para uma polícia que espanca professoras e professores em plena luz do dia – e é incrível que, apesar disso, algumas pessoas ainda se sintam no direito de pôr em dúvida as agressões. Talvez, de suas posições quentinhas e privilegiadas, não conheçam polícia. Talvez mesmo sejam aquele tipo de pessoa que faz selfie com oficial da PM em ato pacífico pela defesa de seu gagau.
Na segunda-feira mesmo, após uma chamada feita nas redes sociais, saímos em marcha da Feira Feminista até a Feira do Livro “oficial”, no centro da cidade. Durante o trajeto o ato foi crescendo, mulheres foram unindo-se a nós e já éramos mais de cem quando encontramos uma barreira de policiais do BOE elegantemente postada à entrada da atividade, algo surpreendente em tempos de segurança zero no RS. Apesar de estarmos sendo vigiadas e filmadas, não nos intimidamos e entramos: na Feira, através de microfone humano, denunciamos a agressão e exigimos punição e providências.
Na noite da segunda-feira então, conforme combinado, foi convocado o segundo ato. Motivos para nos levar (novamente) às ruas não faltam: retrocesso em cima de retrocesso, temos sofrido brutal perda de direitos dia após dia. A violência contra a mulher é algo tão naturalizado que machistas se sentem no direito de protestar contra nosso protesto! Na página do evento, dezenas de trolls fascistas se revezaram na tentativa infrutífera de nos intimidar. Jornalistas de uma direita raivosa bradavam em seus programecos de rádio contra nossa reação: para eles, somos mentirosas e matreiras, como insinua o texto do monstruoso PL 5069/13 que, entre outras coisas, acaba com a oferta da profilaxia de gravidez na rede pública.
E então na noite seguinte lá estávamos: velas, cruzes e cartazes. Em solidariedade às mulheres agredidas na Feira Feminista, mas também em protesto pela agressão e morte de tantas outras mulheres e meninas.
Pelas meninas que são assediadas, abusadas e estupradas em suas próprias casas por parentes e amigos de confiança.
Pelas meninas que são “doadas” por suas famílias pobres, para servir em casas “de família” como escravas domésticas e sexuais.
Pelas mulheres que tem seus membros amputados simplesmente por desejarem terminar uma relação.
Pelas mulheres assassinadas, que tem seus corpos queimados, escondidos e profanados por aqueles que dizem amá-las.
Pelas mulheres que morrem em clínicas clandestinas de aborto porque o Estado, em nome da “defesa da vida”, prefere abandoná-las à morte.
Pelas companheiras violentadas e assassinadas das quais evitamos dizer o nome por que, sendo prostitutas, o estigma as fere em vida e morte.
Por todas nós, que vivemos em constante risco pelo fato único e simples de sermos mulheres. Levantamos nossas vozes e bandeiras e cruzes, e derramamos lágrimas. Por que alguns relatos pesavam demais, as lágrimas rolavam quentes e grossas pelas faces.
E eu, depois de um momento tão intenso como foi essa re-união?
Sigo torcendo muito para que a chamada do ato, “Mexeu com uma, mexeu com todas”, deixe de ser uma linda utopia e passe a ser regra na vida real.
Que eu não saia pra ato feminista deixando a babá em casa zelando pelos meus filhos enquanto as crianças dela cuidam umas das outras.
Que eu enxergue a mina que tá catando o lixo na rua logo ali, no caminho do ato, e quem sabe a traga pra perto.
Que meu nariz não empine e eu não pense toda hora que o “meu” feminismo é melhor que o “teu” ou que eu sou mais importante pra luta feminista que tu – por que essa luta só se faz de mãos dadas e caminhando lado a lado.
Que eu não mais hostilize as prostitutas com minhas teorias bem embasadas em pensadoras putafóbicas às quais talvez elas nem tenham tido acesso, por que a vida é na prática e não dá trégua.
Mexeu com uma, mexeu com todas. Mesmo. Que deixe de ser uma frase linda em cartaz e venha de vez para a vida.
Tem mais uma galeria de fotos da Feira aqui e mais registros do ato aqui